09.07.2022 às 13:44h - Geral
Foi na volta de um dia normal na escola que Maria* percebeu os sinais de que algo não estava certo com a filha de quatro anos. Apesar de ter acabado de jantar na creche particular que estudava, em Florianópolis, a menina reclamou de fome. Os dias se passaram, e a situação se repetiu, o que causou estranheza na contadora. Dias depois, veio o braço machucado e a calça molhada de urina, situações que acenderam alerta.
A desconfiança de que a filha era vítima de maus-tratos foi confirmada no último final de semana, quando vídeos de agressões dentro da creche circularam nas redes sociais. Em uma das imagens, uma mulher é flagrada usando um cobertor para abafar o choro de uma bebê. As denúncias foram feitas por uma ex-funcionária.
Além da Capital, outro caso semelhante ocorreu em uma creche pública em Joinville, no Norte do Estado. Situações que levantaram dúvidas de mães e pais sobre como identificar possíveis episódios, principalmente os que envolvem crianças que ainda não têm capacidade de descrever possíveis abusos.
O crime de maus-tratos está previsto no artigo 136 do Código Penal Brasileiro. Ele também é explícito no Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio do artigo 232, que criminaliza a conduta de “submeter criança ou adolescente sob autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento”.
— Casos graves de castigos físicos ou psicológicos, ou utilização de outros métodos drásticos de disciplina ou correção, sujeitam os responsáveis às penas de prisão, multa, indenização das vítimas pelos danos causados, entre outras sanções previstas em legislação especial a depender do caso — explica o defensor público e titular da 21ª Defensoria de Florianópolis, Marcelo Scherer da Silva.
Porém, a denúncia sobre esses casos esbarra em outro problema: a identificação das agressões. Isto porque, na maioria das situações, as vítimas são crianças menores, que não têm capacidade de expressar a violência.
— Precisa ser alguém habilitado a olhar, descrever e compreender os comportamentos e rotinas da criança na unidade escolar. Quando ela começa a se comportar de um modo não habitual ela, geralmente, está sinalizando que algo não está indo bem — enfatiza a psicóloga e professora da Furb Catarina Gewehr.
Alteração no sono, urina e mudança de comportamento podem ser indicativos
Foi observando o comportamento da filha, por exemplo, que Maria* percebeu que algo estava errado. Além da fome constante - mesmo tendo comido na escola —, a criança começou a apresentar nervosismo e chorava toda a vez que ouvia falar na creche.
O estopim foi na quarta-feira passada, 29. Ao buscar a menina na escola, uma das professoras informou que trocou a calça porque ela teve um "escape" de urina. Mas, ao abrir a mochila e ver a roupa, a mãe percebeu que a história não era essa.
— Ela me disse "mãe, a 'profe' me deixou trancada dentro da sala, eu gritei e pedi socorro, mas não abria a porta". Depois, eu soube por uma ex-funcionária que ela ficou mais de uma hora lá trancada e o motivo foi porque ela dizia que minha filha era fofoqueira — conta.
Sinais como o apresentado pela filha de Maria são alguns dos indicativos de problemas relacionados a maus-tratos, como explica a delegada Michele Alves Correa Rebelo:
— A mudança de comportamento é bem comum. Em alguns casos é bem complicado extrair essas informações. Mas quando se tem uma certa idade, essa mudança de comportamento é bem nítida, por isso é importante que os professores sejam atenciosos, principalmente se ver alguma marca.
Mudanças comportamentais se alteram conforme idade
Conforme a psicóloga Catarina Gewehr, alterações no sono e no apetite são alguns dos indicadores de maus-tratos. Quando uma criança urina na cama mesmo depois do desfralde, por exemplo, pode ser um sinal de que ela tenha sofrido algum tipo de violência.
Mas, ela ressalta que essas mudanças comportamentais também podem alterar conforme a idade da vítima.
— O primeiro sinal é uma mudança no comportamento, nas atitudes e nos hábitos. Se a criança vai dormir às 21 horas, por exemplo, mas acorda irritada às 23 horas, isso pode ser um indicativo, principalmente nas menores de cinco anos. Nos maiores, a partir de sete anos, eles tendem a ficar mais introvertidos, menos comunicativos, o que aumenta o nível de irritação. Já na adolescência, às vezes, os comportamentos de rebeldia e transgressão também são formas de pronunciar um mal estar ou desconforto — diz.
Como denunciar?
Depois de identificar a situação, o próximo passo é denunciar os maus-tratos. Entre os órgãos que apuram as condutas, está o Conselho Tutelar, que tem como dever proteger a criança.
Após receber a denúncia, as equipes vão até o local a fim de coletar elementos que comprovem se há algo de errado. Caso seja comprovado, a equipe, então, encaminha a situação para a instituição responsável.
— Quando for um caso coletivo, nós enviamos para quem cuida da instituição. Agora, quando é um caso individual, orientamos a mãe que não envie mais a criança à escola, por exemplo, até que seja verificado. Constatou que era verdadeiro, nós podemos oferecer uma notícia de fato para o Ministério Público ou registrar um boletim de ocorrência — explica o conselheiro tutelar da região Continental de Florianópolis, Jossemar Santos de Oliveira.
Na delegacia, se os maus-tratos são confirmados, um inquérito é aberto, onde a criança é ouvida com o apoio de psicólogos da própria instituição. Em alguns casos, inclusive, o autor das agressões também pode ser indiciado por tortura.
— Por exemplo, se a pessoa resolve castigá-la [a criança] de uma forma intensa, que causa intenso sofrimento, isso pode caracterizar um crime de tortura — reforça a delegada Michele Alves Correa Rebelo.
Em caso de maus-tratos, denúncias podem ser feitas através dos seguintes canais:
Disque 100
Conselho Tutelar municipal
Polícia Militar: 190
Disque-denúncia: 181
Denúncia pelo WhatsApp da Polícia Civil: (48) 98844-0011
Polícia investiga caso em Florianópolis
A Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) abriu um inquérito para investigar as denúncias de maus-tratos na creche em Florianópolis. De acordo com o delegado Luis Felipe Fuentes, os pais das crianças já foram ouvidos.
Ex-funcionárias da creche relataram à NSC TV que era comum que as crianças fossem isoladas das demais caso fizessem algo que desagradasse as pessoas responsáveis. Teriam ocorrido ainda casos de agressões com brinquedos.
O Conselho Tutelar da Capital informou que esteve na creche mais de uma vez, sendo a última em maio deste ano, mas não flagrou situações de maus-tratos nem crianças machucadas. Ainda assim, o órgão disse ter advertido a proprietária em dezembro do ano passado para que não houvesse episódios de violência contra as crianças após ter recebido denúncia de outra ex-funcionária.
Na quarta-feira, 06, o Procon de Santa Catarina interditou o local até que as investigações sejam encerradas. Em nota, a defesa da creche classificou as denúncias como “fake news” e informou que não houve qualquer ato ilícito nas dependências da escola, que o local esteve em funcionamento desde 2016 sem receber reclamações e que a direção está à disposição das autoridades para prestar esclarecimentos.
A respeito da interdição, ela alega que não foi comunicada sobre o fato.
Em Joinville, caso segue sendo investigado
Em março, a Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) de Joinville, no Norte de Santa Catarina, abriu um inquérito para apurar um caso semelhante de maus-tratos em um Centro de Educação Infantil (CEI) da cidade. As denúncias dos pais chegaram em pelo menos três canais diferentes e abordam desde agressões físicas a suspeitas de falta de lancha na unidade.
Ao menos três casos foram registrados junto ao Conselho Tutelar. O órgão informou que todas as ocorrências que chegaram à instituição foram repassadas para a Secretaria e Conselho Municipal de Educação.
O delegado Pedro Alves, que conduz as investigações, informou que o processo ainda está na fase inicial e não deu mais detalhes sobre o caso. Também não foram informadas quantas famílias denunciaram os maus-tratos.
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